terça-feira, 10 de abril de 2012

Almeida Garret - Seus Olhos


Seus Olhos

Seus olhos - que eu sei pintar
O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar,
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda a alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.

Almeida Garrett

Florbela Espanca - O meu soneto


O Meu Soneto

Em atitudes e em ritmos fleumáticos,
Erguendo as m
ãos em gestos recolhidos,
Todos brocados f
úlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos...

E os meus olhos serenos, enigm
áticos
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, trist
íssimos, extáticos,
S
ão letras de poemas nunca lidos...

As magn
ólias abertas dos meus dedos
S
ão mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d
´amor trazem de rastros...

E a minha boca, a r
útila manhã,
Na Via L
áctea, lírica, pagã,
A rir desfolha as p
étalas dos astros!..

Florbela Espanca

Fernanda Castro - Já não vivo, só penso


Já não vivo, só penso

Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.

Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,

ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.


Fernanda de Castro

sábado, 7 de abril de 2012

Olavo Bilac - Tédio


Tédio

Sobre minh'alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!

Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!

Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,

Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!...

Olavo Bilac

Ruth Rocha - Ai, que saudade...


Ai, Que Saudades...

Ai que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais...
Me sentia rejeitada,
Tão feia, desajeitada,
Tão frágil, tola, impotente,
Apesar dos laranjais.

Ai que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Não gostava da comida
Mas tinha que comer mais...
Espinafre, beterraba,
E era fígado e era fava,
E tudo que eu não gostava
Em porções industriais.

Como são tristes os dias
Da criança escravizada,
Todos mandam na coitada,
Ela não manda em ninguém...
O pai manda, a mãe desmanda,
O irmão mais velho comanda,
Todos entram na ciranda,
E ela sempre diz amém...

Naqueles tempos ditosos
Não podia abrir a boca,
E a professora era louca,
Só queria era gritar.
Senta direito, menina!
Ou se não, tem sabatina!
Que letra mais horrorosa!
E pare de conversar!

Oh dias da minha infância,
Quando eu ficava doente,
Ou sentia dor de dente,
E lá vinha tratamento!
Era um tal de vitamina...
Mingau, remédio, vacina,
Inalação e aspirina,
Injeção e linimento!

E sem falar na tortura:
Blusa de gola engomada,
Roupa de cava apertada,
Sapatinho de verniz...
E as ordens? Anda direito!
Diz bom dia pras visitas!
Que menina mais sem jeito!
Tira o dedo do nariz!

Que aurora! que sol! que vida!
Vai já guardar os brinquedos!
Menina, não chupe os dedos!
Não pode brincar na lama!
Vai já botar o agasalho!
Vai já fazer a lição!
Criança não tem razão!
É tarde, vai já pra cama!

Vê se penteia o cabelo!
Menina se mostradeira!
Menina novidadeira!
Está se rindo demais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras,
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Ruth Rocha

Vinícius de Moraes - O que tinha de ser


O que tinha de ser

Porque foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança
Porque já eras meu
Sem eu saber sequer
Porque és o meu homem
E eu tua mulher

Porque tu me chegaste
Sem me dizer que vinhas
E tuas mãos foram minhas com calma
Porque foste em minh'alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser

Vinícius de Moraes

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Vinícius de Moraes - Canção da Eterna Despedida


Canção Da Eterna Despedida

A noite é linda
inda palpita no mar
a lua cheia a se esvair em luar
Vem, ó minha amada
e fica linda e sem véu
como essa lua no céu

Eu sou o mar
Ó meu amor, diz que sim
E vem pousar o teu luar sobre mim
Vem que todo dia
cada noite tem um fim
só para nos separar

Ai, minha amada
madrugada chegou
e a sua luz me diz que devo partir
Mas meu coração
não compreende a razão
de me arrancarem de ti

É tanta a mágoa
desta separação
que já meu corpo chora a falta do teu
Que esses cantos meus
são como prantos de adeus
por me arrancarem de ti

Vinícius de Moraes